Cachos à brasileira
O prêmio era um pacote de uma semana para Buenos Aires. Aos 30, recém-separada, nem pensei duas vezes ao escolher a companhia para a viagem: a amiga parceira de faculdade, profissão, desilusões amorosas e diversão. Vamos? Claro, ela nem titubeou.
Chegamos na capital portenha com duas malas prontas para a balada: muita roupa preta, maquiagem, acessórios e o endereço do site “A Donde Vamos” como roteiro para ocupar os próximos dias. A intenção era mesclar museus, livrarias, apresentações de tango às famosas festas argentinas e conferir a fama de notívaga de Buenos Aires.
O que a gente não imaginava era que o cabelo cacheado — característica que dividíamos entre nós e com outras milhões de brasileiras — seria um traço importante por toda a viagem.
Os cachos eram mais eficientes para revelar nossa origem brasileira do que qualquer passaporte. Alimentavam também o estereótipo machista dos argentinos sobre o interesse das brasileiras quanto a eles próprios.
Na primeira noite em Palermo Soho percebemos o abismo cultural. As argentinas eram discretas e louras. Comum vê-las de jeans e Havaianas nas festas mais descoladas. Nós, nossa cor e nossos cabelos anelados chamávamos atenção em qualquer espaço só por sermos assim. Ainda mais sem a presença de parceiros masculinos ao nosso lado.
Andar na Calle Florida se transformou num festival de “hola, que tal”, “brasileñas” e qualquer outra frase que os portenhos considerassem encantadoras. As primeiras até pareceram lisonjeiras. As primeiras até pareceram lisonjeiras. A partir da décima, soava como dizer que Maradona era melhor do que Pelé. Não tínhamos mais paciência.
Salto, maquiagem, acessórios foram ficando no fundo da mala. Era preciso improvisar para alcançar um visual tão discreto quanto o das argentinas. Sem sucesso, claro. Não conseguimos passar despercebidas em lugar algum.
Em uma cantina italiana, atraímos todos os olhares ao nos sentarmos sozinhas à mesa. Era sexta à noite e usávamos vestidos pretos básicos e comportados, sapatos sem salto e quase nada de maquiagem. Visual de almoço de domingo no Brasil. Mesmo assim, a sensação era de que, a qualquer momento, uma daquelas esposas argentinas iria pedir que nos retirássemos do ambiente familiar.
O momento mais constrangedor, e perigoso, foi a saída do Museu da Moda, em San Telmo. Domingo à tarde, pegamos um táxi para voltarmos ao hotel. Mesmo sem puxarmos conversa, o motorista percebeu que éramos brasileiras. Comentou nossa cor, nossos cabelos. Contou que havia namorado uma carioca e adorado. Avisou que buscaria um primo para nos levar em um city tour pela cidade.
Num lampejo de presença de espírito, minha amiga, que falava espanhol, mudou a rota e disse que iríamos encontrar nossos maridos numa sorveteria famosa do centro. Eles não se animaram a ir ao Museu da Moda, por isso, fomos sozinhas, explicou calmamente.
Relutante, o taxista concordou. Ainda propondo passar no nosso hotel mais tarde. Ficamos na sorveteria por um bom tempo, com medo de ele e o primo estarem à nossa espera. Conseguimos voltar para o hotel em segurança, no início da noite. Para o Brasil, trouxemos de lembrança além de vinhos e doce de leite, a certeza de que ser mulher e estar sozinha é ficar vulnerável em qualquer cultura, principalmente nas que ainda não conhecemos.